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POCUS na Ressuscitação Cardio-Respiratória no Pré-Hospitalar

Não há meandro da medicina clínica onde POCUS não esteja implicado. As aplicações de POCUS são, atualmente, transversais a toda a prática da medicina clínica e estão a evoluir a um ritmo impressionante [1]. Aqui vou focar no uso de POCUS na Ressuscitação Cardio-Respiratória (PCR) no Pré-Hospitalar e lançar tópicos para discussão futura.

Mas antes da busca por uma compreensão teórica e metodológica, vejamos o uso de POCUS no Pré-Hospitalar enquadrado num caso clínico – imagem cedida pelo Dr. José Maia de Sousa. Adotar uma estratégia de aprendizagem humanista e problematizadora permite observar, compreender, descrever e analisar reflexivamente uma determinada situação real, adquirindo conhecimento e experiência que podem ser úteis na tomada de decisão frente a outras situações. 

VINHETA CLÍNICA

Um Homem de 78 anos de idade, com antecedentes de HTA e DM tipo 2 controladas, colapsa perante os familiares, que são incapazes de iniciar SBV. Os bombeiros chegam dentro de 5 minutos e identificam Paragem Cardio-Respiratória (PCR) e iniciam SBV-DAE (sem indicação para Choque). À chegada da VMER em Fibrilação Ventricular (FV), tendo sido administrados 3 Choques. Feita avaliação POCUS após o 3º Choque e 26’ de manobras no total, tendo sido interrompidas as manobras.

Foi feito POCUS na janela subcostal durante as compressões nas manobras de Suporte Avançado de Vida, seguido de verificação que não existe atividade contráctil do miocárdio.

Faço medicina de doente crítico há cerca de 20 anos e em diversos ambientes: desde a enfermaria de medicina interna com os doentes descompensados (quando as Unidades de Cuidados Intermédios eram quimeras), passando para o apoio das equipas de reanimação intra-hospitalar em todo o tipo de enfermarias e, claro, no Serviço de Urgência e Sala de Emergência. Adiciono ainda a VMER, onde a reanimação de situações de paragem cardio-respiratória define a sua principal atuação.

Passei por muitas revoluções dos protocolos da reanimação: de valorizar as insuflações para as desvalorizar, de passar vários tempos nas compressões para passar mais tempo a comprimir, com qualidade, garantindo sempre que são as compressões a pedra de toque, identificar os 4Hs e os 4Ts, aprender a trabalhar em equipa, e pronto, há sempre algo que me faz pensar nisto tudo, e não podia deixar de ser a ecografia à cabeceira do doente ou POCUS.

POCUS no Pré-Hospitalar

Se em ambiente hospitalar passei por muito até integrar POCUS na minha prática diária com aceitação pelos meus pares, no pré-hospitalar tenho ainda um paradoxo a resolver. Se há vontade e facilitadores para colocar as máquinas no pré-hospitalar é aí, mas se há barreiras para as colocar é também aí.

A aceitação de POCUS no pré-hospitalar é muito intuitiva: a falta de exames complementares e a necessidade de agir rápido torna a ecografia com um aparelho hand-held tão premente, que parece não haver dúvidas. No entanto, os ambientes onde se trabalha no pré-hospitalar são tão diversos e as situações tão diversas também, que o objetivo de ter um aparelho “one fits all”, que à partida parece ser fácil de resolver, fora do hospital é um filme! É a busca do Tricorder do Star Trek…

Quem se lembra de olhar para um ecrã de um tablet às 14h00 no dia 7 de julho a 42ºC, no meio da cidade de braga? Ou entrar num T1 adaptado a 5 divisões e a vítima estar deitada ao lado da cama, onde 2 bombeiros se encontram a realizar as manobras de suporte básico de vida?

Portanto, POCUS no pré-hospitalar levanta muitos obstáculos para a sua aplicação e o que é intuitivo deve ser refreado por uma abordagem mais racional [2].

Assim, o uso da ecografia, durante as manobras de suporte avançado de vida, é aconselhado nas orientações do European Resuscitation Council (ERC) Guidelines 2021 [3]:

  • POCUS não deve causar interrupções adicionais ou prolongamento durante as compressões cardíacas;
  • POCUS pode ser útil no diagnóstico de causas tratáveis de paragem cardíaca tais como o tamponamento e o pneumotórax;
  • A dilatação isolada do Ventrículo Direito durante a PCR não deve ser usada como diagnóstico da embolia pulmonar massiva;
  • Não se deve usar POCUS para avaliar a contratilidade do miocárdio como único indicador para terminar as manobras de reanimação na PCR.

 

Ou seja, as recomendações são mais limitações no uso de Ecografia na PCR, e não indicações inquestionáveis. 

No entanto, para quem pratique POCUS com regularidade (e aqui falo mais de 10 exames realizados e analisados por semana por mais de 5 anos), sabe, ou pelo menos, sabe por onde começar a trabalhar, para atuar nas seguintes situações:

  • POCUS na ajuda da decisão de terminar manobras: quando realizado com treino, aparenta apresentar um valor preditor positivo para morte no local bastante elevado [4];
  • Diagnóstico de causas reversíveis de PCR – são inúmeros os protocolos que permitem fazer uma avaliação rápida (o limite do número dos protocolos parece ser a imaginação dos autores na criação dos seus acrónimos) dos 4H’s e dos 4T’s, com ênfase para a embolia pulmonar, o tamponamento cardíaco e a hipovolémia [5];
  • POCUS na confirmação da presença de contração do miocárdio, em oposição à presença de tradução eléctrica exclusiva na aplicação do pace trasncutâneo externo;
  • Nas causas de choque não aparente, POCUS pode orientar na administração de fluidos e terapêutica inotrópica, e escolha do hospital de destino [6].

 

Na prática do dia a dia a utilização da ecografia num cenário de PCR poderá trazer alguns desafios, logo para começar a necessidade de um membro capaz da realização de uma avaliação cardíaca subcostal num período máximo de 10 segundos (período máximo destinado à pesquisa de pulso). Esta avaliação só deve ser realizada em ritmos compatíveis com contração miocárdica (AEsP ou Fibrilação).

Durante os 10 segundos da avaliação devemos somente adquirir a imagem deixando a interpretação para os 2 minutos de ciclo de SAV seguintes. A pesquisa de outras causas reversíveis de PCR também deve ser realizada durante os 2 minutos destinados aos ciclos de SAV, pois as compressões cardíacas eficazes são a medida mais importante para a reversão de um PCR. 

Voltando à nossa Vinheta Clínica, que abriu este post, POCUS não teve a solução para um desfecho favorável. No entanto, a dúvida instalada após a FV e dentro de um tempo de PCR ainda razoável, POCUS ajudou, mas não foi o único dado que definiu a tomada de decisão de interromper as manobras. O uso de POCUS para identificar causas reversíveis levou o médico operacional da VMER a usar a sua “Sonda de Bolso” sem prejudicar a marcha da ressuscitação, e em tempo real identificar a ausência de atividade contrátil cardíaca.

Aqui foquei-me nos aspectos imediatos e fazíveis de POCUS no pré-hospitalar aplicado à PCR, tecendo a minha opinião enquadrada na prática da realidade portuguesa. Considero fazível a aplicação dos tópicos acima descritos, tendo bem presentes as recomendações da ERC que fazem bom senso e colocam limites ao entusiasmo que toda a tecnologia traz, com a formação adequada a médicos e enfermeiros operacionais na VMER. 

Em breve, focarei em outros aspectos do uso de POCUS no pré-hospitalar além da aplicação na PCR. Não vou fazer spoiler, mas o Tricorder do Star Trek paira sempre nestes assuntos!

POCUS no Pré-Hospitalar

Procura-se este profissional de saúde para integrar qualquer VMER em Portugal. Ele possui um super-scanner portátil que é capaz de analisar o mais variado tipo de situações, desde terrenos desconhecidos, falhas estruturais em naves e doenças em pessoas!

Referências:

[1] Amaral CB, Ralston DC, Becker TK. Prehospital point-of-care ultrasound: A transformative technology. SAGE Open Med. 2020 Jul 26;8:2050312120932706. doi: 10.1177/2050312120932706. PMID: 32782792; PMCID: PMC7383635.

[2] Bøtker MT, Jacobsen L, Rudolph SS, Knudsen L. The role of point of care ultrasound in prehospital critical care: a systematic review. Scand J Trauma Resusc Emerg Med. 2018 Jun 26;26(1):51. doi: 10.1186/s13049-018-0518-x. PMID: 29940990; PMCID: PMC6019293.

[3] Perkins GD, Graesner JT, Semeraro F, Olasveengen T, Soar J, Lott C, Van de Voorde P, Madar J, Zideman D, Mentzelopoulos S, Bossaert L, Greif R, Monsieurs K, Svavarsdóttir H, Nolan JP; European Resuscitation Council Guideline Collaborators. European Resuscitation Council Guidelines 2021: Executive summary. Resuscitation. 2021 Apr;161:1-60. doi: 10.1016/j.resuscitation.2021.02.003. Epub 2021 Mar 24. Erratum in: Resuscitation. 2021 May 4;163:97-98. PMID: 33773824.

[4] Aichinger G, Zechner PM, Prause G, Sacherer F, Wildner G, Anderson CL, Pocivalnik M, Wiesspeiner U, Fox JC. Cardiac movement identified on prehospital echocardiography predicts outcome in cardiac arrest patients. Prehosp Emerg Care. 2012 Apr-Jun;16(2):251-5. doi: 10.3109/10903127.2011.640414. Epub 2012 Jan 11. PMID: 22235765.

[5] Ávila-Reyes D, Acevedo-Cardona AO, Gómez-González JF, Echeverry-Piedrahita DR, Aguirre-Flórez M, Giraldo-Diaconeasa A. Point-of-care ultrasound in cardiorespiratory arrest (POCUS-CA): narrative review article. Ultrasound J. 2021 Dec 2;13(1):46. doi: 10.1186/s13089-021-00248-0. PMID: 34855015; PMCID: PMC8639882.

[6] Breitkreutz R, Price S, Steiger HV, Seeger FH, Ilper H, Ackermann H, Rudolph M, Uddin S, Weigand MA, Muller E, Walcher F, Emergency Ultrasound Working Group of the Johann Wolfgang Goethe-University Hospital FaM (2010) Focused echocardiographic evaluation in life support and peri-resuscitation of emergency patients: a prospective trial. Resuscitation 81(11):1527–1533.

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